Pancho: outras formas e olhares | Caminhos
Moçambique
2018
Sónia Sultuane
Exposição
Mosaico sobre contraplacado
50×200 cm
Pancho e os outros: um farol para artistas de boa vontade
Pediram-me o Jorge Dias e a Sónia Sultuane que pense e escreva sobre a maneira como o farol Pancho Guedes os guiou, com segurança, nas elaborações que agora expõem e também como vejo a homenagem que assim fazem àquele polimórfico produtor de formas de uma indigestão de formas africanas.
Aceitei, consciente da minha fraca preparação como crítico d’arte, porque o Pancho era um amigo e estes seguidores da sua obra, até por isso mesmo, merecem amizade.
A arquitectura e outras artes plásticas entrecruzam-se de muitas formas e maneiras e sentidos. Existem todas no espaço, onde partilham dimensões e criam tensões e ressonâncias que nos permitem falar da arquitectura de uma peça de pintura ou das qualidades escultóricas de um edifício.
Estas ambiguidades, ou continuidades, foram sempre a grande tentação do Pancho.
As suas arquitecturas foram sempre concebidas como expandidas esculturas e as suas pinturas e esculturas são arquitectura noutra escala.
Aquela tentação é bem entendida e explicita na peça “Olho”, da Sónia, que poderia bem ser o leitmotif desta colecção.
Se alguma característica comum se abstrai do trabalho destes dois plásticos, aludindo subliminarmente ao que Pancho produziu é, sem dúvida, uma geometria cristalina, arquitectural e pervasiva presente em todos, mas é interessante como a Sónia reinterpreta Pancho no feminino e o Jorge atravessa o espaço com geometrias texturadas e policromas a que o Pancho não seria avesso.
Estabelecer esta relação, que vem trinta anos atrasada, não é, portanto difícil.
Os três merecem-se no mérito da mesma procura e merecem que, da nossa parte, os saibamos merecer.
Esta exposição é o espelho das pessoas que a pensaram e realizaram: uma paisagem humana que junta o vulcão Sónia Sultuane ao calmo estuário Jorge Dias debaixo do firmamento ofuscante do Pancho.
O arrojo de juntar estes três revela as pontes entre as artes e os artistas. Há uma ingenuidade que os liga: a de acreditar que os interesses pessoais e as compulsões expressivas são leituras obrigadas dos temas e dramas de todos e de todos os dias; que a invenção da forma não é um luxo solitário, exibicionista e comercial mas um mandato de que o artista se sente atribuído e responsável.
Neste caso há um tema voluntário e disciplinador: as “coisas” do Pancho. Digo “coisas” no sentido que estes objectos não são classificáveis dentro dos cânones clássicos que separam dimensões e escalas.
Algumas peças são ampliações de jóias ou brinquedos, outras reduções de realidades monumentais, outras ainda do tamanho justo da sua tridimensionalidade cromática.
As duas colecções são coerentes entre si. Poderíamos considerá-las sinfonias com os seus andamentos.
É um privilégio vê-las em conjunto.
As estelas da Sónia poderiam ser de pedra incrustada a gemas policromas e dispostas em cemitério alegre doutros tantos bem-dispostos e aventurados rufiões intelectuais para quem a vida significou ter olhos para ver beleza onde outros só enxergam… o que vêm.
Não há geometrias novas: todos os pontos e linhas e planos e volumes já existem. A arte está na escolha e no arranjo; no baralhar e dar de novo, e só o faz quem sabe dar de novo o que soube baralhar.
Os “coisos” do Jorge vivem melhor num espaço centrífugo, não exigem um enquadramento murário na sua relação com o universo “panchico”; a sua presença é mais abstrata e espacial, mais escultural. Exige maior atenção às disciplinas e aos métodos quantitativos, mas é aí que resolvem a ponte com o celebrado.
Para o primeiro homem a necessidade do objecto implicou a sua veneração, que o levou à sublimação da forma. O sagrado veio depois e ofuscou o decorativo com a imposição do simbólico.
Com o passar do tempo e dos séculos vem novamente a necessidade e a coragem da celebração do humano e das suas dimensões: o corpo e o sentir, a sociedade e as ideias, o teatro da vida e o drama do tempo, o medo da morte e o conforto do sexo, a força da paisagem e a impressão fugidia e constante das imagens sugestivas.
No universo das formas visuais inventadas a arquitectura tem cheiro, domina a luz, controla o som, impacta o ambiente e envolve os espaços pessoais.
A pintura e a escultura ganham, ou perdem, as suas dimensões e qualidades presenciais conforme o seu enquadramento no espaço da arquitectura ou no espaço natural.
Teria sido de grande alcance ambiental se esta exposição pudesse ter sido montada num espaço Pancho. Poderia assim realçar uma das suas qualidades: a harmonia conseguida por estes artistas com a arquitectura de quem querem celebrar.
Deveria falar-se, também, das personalidades que explicam as obras?
Valha-me o “I Ching” e os seus 2000 anos de sabedoria…
A Sónia e o Jorge são dois bichos diferentes nos seus diferentes yin e yang.
Não seguem regras: do seu convívio não podemos classificar quem é o quê.
Sónia Yin? Jorge Yang? O contrário?
Para quem tal não baste aconselho-o a conhecer o Tao Te Ching.
Lao Tzu talvez ajude…
Que fique o mistério para resolver por quem visitar esta mostra.
José Forjaz
28 de Agosto de 2018
Ao encontro de Pancho, por Alda Costa, aqui