A história de discriminação não começou hoje
Guiné Bissau
2011
Francine Oliveira
Entrevista
Relações interculturais
“Aqui no Brasil eu não tenho muita coisa a reclamar na verdade, nós que viemos de África para o Brasil, a gente encontra realmente uma situação um pouco diferente daquilo que estamos acostumados, principalmente no contexto guineense. Quando eu falo não estamos acostumados eu me refiro justamente às relações sociais, às relações étnicas no Brasil. Para o africano, para um guineense ou para qualquer estudante vindo dos PALOP, para você se sentir à vontade no Brasil, não basta vir com a ideia de que o Brasil é um país que tem um segmento de população negra oriundo da África, isso não é suficiente. Eu acho que as relações estabelecidas no Brasil, precisam de ser aprendidas, não precisa apenas de aprender isso por via das novelas, ou outros meios de informação, dá informação sobre o Brasil num outro contexto. Eu acho que só vivendo aqui é que você realmente aprende a se relacionar. Eu falo isso porque para você se dar bem com o brasileiro, você que é negro, é africano, você precisa entender o significado de certas palavras que são dirigidas, com isso vocês consegue amenizar a semântica dos termos que são usados, muitas das vezes são usados em termos de brincadeira, se você quiser realmente considerar as palavras como brincadeira, mas são coisas que você aprende, aprimora com o tempo. Hoje muita gente me chama, não pelo meu próprio nome, mas pela minha pertença étnica, eu refiro-me à cor de pele, fala “negao”, ou “nego”, para eles é uma coisa normal, mas na Guiné ninguém me chamava assim, desse jeito, então é uma realidade que você encontra aqui, muitas vezes como eu disse, talvez não seja por maldade, talvez, mas para você entender isso vai precisar de mais ou menos um ano, dois anos, para você entender o que é discriminação e o que não é. Então são coisas que eu hoje praticamente me sinto à vontade quanto a isso.
Outra situação que o negro tem sempre que se monitorar, o que faz, onde você estiver, porque você sempre preparado, a gente preparado no meio de caminhos policiais brasileiros, geralmente quando encontra dois, três negros, o que não é muito comum no Brasil, vias públicas, principalmente os lugares, bairros nobres da cidade, para encontrar dois, três, quatro negros juntos, não é comum, você encontra negros brasileiros praticamente é nas favelas, ou nos subúrbios da cidade, nos grandes lugares e romarias dentro da cidade, da metrópole, você não encontra absolutamente, não encontra. Então, esses espaços, quem já tem um certo nível de educação conquistado na educação escolar e tudo, a preferência não é entrar no subúrbio, é conviver no meio urbano onde você aprende com as pessoas que estão lá. Então, sempre que você vai por exemplo, para o shopping e pega autocarro, por exemplo, você é sempre visto assim. Eu me lembro quando uma vez estávamos indo do bairro onde a gente morava na cidade de Maceió, Alagoas, entramos no ônibus, eu e um colega meu, aí pegamos duas cadeiras lá dentro, só que ele acabou descendo a meio do caminho, eu segui a viagem. O ônibus estava lotado, tinha muita gente de pé, a grande maioria eram mulheres, ao lado de mim tinha uma cadeira vazia, ninguém sentou, até que cheguei ao meu destino. Claro que isso não tem uma outra explicação, então todo o mundo, de certa forma, tem medo do estranho, as pessoas vêm de imediato ‘ah, você, é bandido, é ladrão’, porque aqui praticamente é bom frisar que ser bandido aqui, ser ladrão, muitas das vezes subentende ser negro. Dizem que a maior população encarcerada do Brasil é negro. Então você que é negro, mesmo que não seja nada disso, já tem esse estigma, você é estigmatizado por conta disso, mas na vivência, quando você é apresentado, geralmente quando você tem um amigo ou uma amiga brasileira, quando eles te apresentam para outro colega, a primeira coisa que se anuncia é que é um cara estrangeiro, já mostra claramente a criar limites, fronteiras para separar, “ele é negro, mas não é brasileiro”, são coisas assim que eu falo, convivo com isso diariamente. Durante toda a estada aqui no Brasil já passei por várias ocasiões similares, várias, inclusive para, como no Brasil, geralmente jovem brasileiro ficam, não é, tem aquele negócio de namorar, não é necessariamente namorar, mas ficar, quando percebem que você não é daqui, é negro, mas não é brasileiro, já certos comportamentos mudam, você ganha algumas vantagens na verdade, o que eu acho um absurdo, ser humano é ser humano, negro no Brasil, negro na África, é negro, é ser humano em qualquer parte do mundo, não precisava disso, mas o Brasil tem uma história, tem toda uma trajetória que se formou na qual essa sociedade foi formada, eu acho que a história de discriminação não começou hoje e provavelmente não termina hoje.
Mateus, natural de Guiné-Bissau, estuda no Brasil, 31 anos
Entrevista concedida no âmbito do projeto de investigação: “Narrativas Identitárias e Memória Social: a (re)construção da lusofonia em contextos interculturais”, financiado pela FCT (PTDC/CCI-COM/105100/2008
Autoria da imagem: Vano (uso livre)