Biblioteca

Lusofonia – herança e troféu de guerra

Lusofonia – herança e troféu de guerra

Portugal

2018

Moisés de Lemos Martins

Português

Lusofonia – herança e troféu de guerra

 

Ideias

Moisés de Lemos Martins

2017-02-20, Correio do Minho

 

 

Onésimo Teotónio Almeida, professor na Universidade de Brown, acaba de publicar A Obsessão da Portugalidade. O estudo é feito à maneira de um mosaico de muitas peças e tem como objeto a questão da identidade nacional.

A seu modo, Onésimo declina o problema que Eduardo Lourenço identificou em tempos: Portugal sofre do mal de hiperidentidade, porque nunca se recompôs verdadeiramente de ter perdido as colónias. E teria sido por essa razão que agora se arrasta na história, penosamente, com a nostalgia de um tempo em que foi império, não divisando para si outra grandeza que a de repetir no presente o já feito e o já sido.

O mal de hiperidentidade para que chamou a atenção Eduardo Lourenço não se cinge, em exclusivo, à Portugalidade. Lourenço remói um sentimento de desconforto relativamente à figura de Lusofonia, da qual os Portugueses não desgrudam, mas de que desconfiam os nossos parceiros lusófonos. Manifestam-lhe mesmo um olímpico desinteresse, e nalguns casos, profunda repulsa. Vejam-se, neste sentido, as farpas aceradas com que o linguista brasileiro, Carlos Alberto Faraco, zurze a Lusofonia, em obra publicada em 2016: História Sociopolítica da Língua Portuguesa.

Dei-me conta desta mistura de sentimentos contraditórios, a que anda associada a figura de Lusofonia, quando em junho de 2016 participei, em Timor Leste, na III Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial. Quem realizou esta Conferência foi o Instituto Internacional da Língua Portuguesa.

Numa convocação de Amílcar Cabral, houve quem referisse que a língua portuguesa teria sido a “maior e melhor herança” que Portugal deixara aos povos por si colonizados. Mas Lourenço do Rosário, então Reitor da Universidade Politécnica de Moçambique, contrariou esta versão da história. A razão estaria do lado de Samora Machel, para quem a língua portuguesa não passaria de um “troféu de guerra”, para os povos africanos de língua portuguesa.

A questão colocada por Lourenço do Rosário, com esta crueza, é um ato de insurgência contra quem se apresenta como dono da língua. E nesse aspeto, o linguista brasileiro, José Fiorin, tem plena razão, quando advoga a necessidade de abrir mão da autoridade paterna dos padrões lusitanos. A Lusofonia não pode ser pátria, porque não a podemos encarar como espaço de poder e autoridade. O que se espera dela é que seja mátria, e também frátria, como espaço de iguais, por terem a mesma origem.

Neste contexto, não me parece que a visão messiânica do Quinto Império cultural, de Agostinho da Silva, tenha feito avançar um passo que fosse a construção da comunidade lusófona, embora Fernando Cristóvão, Diretor do Instituto Camões, nos anos oitenta, dê a esta visão o lustro da sua indiscutível erudição e sabedoria. Na obra que publicou em 2008, Da Lusitanidade à Lusofonia, Fernando Cristóvão traçou, deste modo, um caminho lusocêntrico para a Lusofonia. Mas um tal caminho não pode ser partilhado pelos povos que com Portugal partilham o centro do debate, por constituírem todos, em pé de igualdade, a razão de ser da Lusofonia.

Este debate tem atravessado o espaço geopolítico transnacional dos povos que falam o Português. Mas a ideia de Lusofonia não passará de um equívoco, se consistir numa serôdia recauchutagem do lusotropicalismo de Gilberto Freyre, uma teoria social que se funda na excecionalidade da colonização portuguesa – uma ideia de colonização doce, fraterna, não violenta, nem esclavagista. Proposto no Brasil, a partir dos anos 30 do século passado, o lusotropicalismo foi tornado doutrina oficial no Portugal de Salazar, a partir do fim da II Guerra Mundial.

Mas uma ideia dessas para a Lusofonia talvez não passe de um equívoco neocolonial. E se assim for, mais valerá “acabar de vez” com ela, como António Pinto Ribeiro o escreveu no jornal Público, em 2013. Na verdade, não seria destino digno para povo algum deixar-se “apagar” pela centralidade portuguesa, como tem lembrado o académico moçambicano, Nataniel Ngomane.

Dá-se o caso, no entanto, de a ideia de Lusofonia se inscrever no contexto do atual debate sobre a globalização, que é uma realidade de cariz predominantemente económico-financeiro, comandado pelas tecnologias da informação. A globalização apresenta-se, hoje, como um destino inexorável para todos os povos, sendo única e definitiva a identidade dos indivíduos de todas as nações, doravante móveis e flexíveis (sem direitos sociais), mobilizáveis (respondendo ao mercado), competitivos (adotando a lógica da produção) e performantes (realizadores de sucesso), no mercado global.

Existem razões culturais, e também comerciais e económicas, que podem fazer da Lusofonia uma ideia grandiosa. Mas a Lusofonia tem, sobretudo, virtualidades estratégicas, para o espaço transnacional e transcultural dos povos que falam o Português. Os países lusófonos encontram-se, hoje, do mesmo lado da barricada, de países dominados e em permanência empurrados para a periferia da globalização hegemónica – um espaço falado numa única língua, o inglês.

Por essa razão, dado o nosso contexto de comum subalternidade, penso a Lusofonia como uma circum-navegação tecnológica, uma travessia a ser realizada por todos os povos lusófonos, no sentido do interconhecimento, da cooperação, cultural, científica, social, política e económica, e também de afirmação da diversidade no mundo, uma circum-navegação que abra os confins do desenvolvimento humano.