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Descobertas / Descobrimentos e Expansão. Viagem e Travessia. Portugalidade e Lusofonia   

Descobertas / Descobrimentos e Expansão. Viagem e Travessia. Portugalidade e Lusofonia   

Portugal

2018

Moisés de Lemos Martins

Português

Descobertas / Descobrimentos e Expansão. Viagem e Travessia. Portugalidade e Lusofonia   

 

Moisés de Lemos Martins

04.06.2018, Correio do Minho

 

 

 

 

Nunca engracei com a ideia de café sem cafeína, cerveja sem álcool, doces sem açúcar, tabaco sem nicotina, leite sem matéria gorda. Porque me parece coisa que contraria a rugosidade própria do humano. Talvez ainda se insinue por ali a nossa ancestral tradição de julgarmos as coisas manchadas à nascença e a precisarem, por isso, de uma qualquer redenção. É assim que eu leio essa fixação na essência do café, do tabaco, da comida e da bebida – uma obsessão rigorista, que não passa de devoção pelo regime exclusivo, com um pé sempre a fugir para o fundamentalismo.

Também não me caiu bem a recusa do nome Museu das Descobertas, ou dos Descobrimentos, à saída de um debate público. Porque redundou numa fetichização da letra. Os discursos de especialistas, no caso de especialistas em Ciências Sociais e Humanas, constituem uma prática institucional, e são, nesse exato sentido de prática institucional, um jogo que significa sempre o mesmo, e portanto que apenas pode repetir-(se). São práticas de autoridade. E como práticas de autoridade, dão ordens, podendo cair na pecha do tique penal.

A Expansão marítima europeia dos séculos XV e XVI foi um processo de civilização, que teve Portugal como um dos seus maiores protagonistas. Foi um processo que se abriu à alteridade, à diversidade e ao conhecimento do outro. Mas fracassou, logo de seguida, ao assimilar e destruir toda a diferença. Estribou-se no logocentrismo – um discurso único, que foi também o único sentido. Promoveu o etnocentrismo – uma narrativa única, entre génese e apocalipse, que continha a memória de um povo, uno e único. Serviu o imperialismo, colocando-se ao serviço da razão de um único Estado. Produziu o colonialismo, alimentando o tráfico de escravos e produzindo a dominação dos povos do Sul pelos povos do Norte.

Mas abriu, igualmente, o espaço transcultural e transnacional da Lusofonia – um espaço múltiplo e diverso, de culturas, artes e ciência em língua portuguesa, hoje com mais de 250 milhões de pessoas.

A identidade transnacional e transcontinental, que nos permite falar de espaço lusófono, remetendo para a possibilidades de comunidades, seja de cultura e arte, de pensamento e ciência, não é alheia ao movimento moderno, que marca a época, um movimento tecnológico. Não pode, pois, deixar de se inscrever no contexto do atual debate sobre a globalização, que é uma realidade de cariz eminentemente económico-financeiro, comandada pelas tecnologias da informação.

E nisso está a incomparável grandeza do espaço lusófono, o espaço dos povos que têm o português como língua oficial, quando o atual movimento de globalização, pela potência da tecnologia, traz a terreiro a questão da hegemonia de uma única língua, o inglês, e da subordinação das outras línguas e das culturas que delas decorrem.

A subalternização da comunidade lusófona impõe-nos, com efeito, a necessidade de um combate em defesa da nossa identidade, nacional e transnacional, um combate em favor da diversidade das culturas.

Neste conjunto de invocações está a razão pela qual entendo que Museu da Viagem é um título pusilânime, completamente irrelevante, porque não figura a Expansão portuguesa, que é, afinal, a principal gesta dos portugueses, assim como também não figura a viagem que é preciso empreender hoje. A designação Museu da Viagem não ensaia ideia nenhuma sobre a identidade nacional e lusófona, pois decorre da fraqueza e do taticismo políticos.

É verdade que ensaiar o humano é ensaiar a ideia de viagem. Mas de uma viagem com perigos e obstáculos a transpor, e não a viagem low cost, para destinos com hostels. É ensaiar a viagem como errância, enigma e labirinto, e também como rugosidade, viscosidade e incerteza. É ensaiar a viagem como dúvida, embora seja, de igual maneira, ensaiá-la como memória de caminhos já andados e de experiências já vividas.

Por essa razão, também me não cai bem a ideia de Portugalidade. Porque essencializa o caminho já empreendido. Converte a história em natureza e a contingência em eternidade, para falar como Roland Barthes, como se toda a nossa grandeza estivesse em repetir o já feito e o já sido.

O que é próprio do humano é a sua textura rugosa. Existe nele uma excessividade turva e uma desmesura impura e viscosa. Mas é apenas nessa fragilidade, que paradoxalmente está a grandeza de uma vida. Porque a vida é uma travessia. E a travessia, para todas as gerações, não pode deixar de ser “coisa perigosa”.

Lembro Riobaldo, figura maior de O Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Dialogando com os seus combates, dúvidas, medos e com os seus amores por Diadorim, Riobaldo pergunta: “a vida não é não coisa perigosa?” É que “O real não está no início nem no fim, ele se mostra pra gente é no meio da travessia”. “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. “Viver é muito perigoso: sempre acaba em morte”. “Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera”.

As Descobertas, ou Descobrimentos, remetem para a Expansão portuguesa – uma travessia marítima apenas comparável à contemporânea ida à lua, nas palavras de Neil Armstrong. Mas uma viagem que não seja travessia é uma viagem sem grandeza, pelo que não é digna de figurar a aventura humana, e no nosso caso, não é digna de figurar a aventura dos séculos XV e XVI, nem a travessia que hoje importa realizar.

Como assinalei, a experiência da “diversidade do mundo”, que a Expansão tornou possível, é relativa a um tempo mítico de descoberta e encontro, que ficou comprometido, praticamente logo no início, pelas necessidades imperialistas do capitalismo comercial. No entanto, da mesma maneira que a Expansão não pode ser pensada apenas como uma abertura à “diversidade do mundo”, mas de igual forma como um movimento de assimilação e dominação do mundo pelo desígnio ocidental, assim também o debate sobre a identidade transcultural e transnacional lusófona deve passar por um movimento de descolonização da língua, do pensamento e do conhecimento.

O físico e historiador de ciência, Henrique Leitão, em Os Descobrimentos Portugueses e a Ciência Europeia, confirma que a Expansão marítima europeia foi, sem sombra de dúvida, a maior transformação, política, social, administrativa e económica dos séculos XV e XVI. Em muitos trabalhos que publicou, explica de que modo foram decisivos os estudos portugueses de matemática e cartografia para a criação de um tempo novo. A esse tempo novo chamamos modernidade, um tempo inventado pela Expansão marítima, que fomentou a participação de todas as camadas sociais no estudo da Natureza e na coleta de todo o tipo de informação, através das novas práticas empíricas, desenvolvidas entre soldados, marinheiros, mercadores e viajantes.

O que é que pode, neste contexto, um triste e pusilânime Museu da Viagem contra um arrebatador Museu das Descobertas, ou dos Descobrimentos? É como se o Museu Virtual da Lusofonia, inaugurado em novembro passado na Universidade do Minho, decidisse converter-se num Museu Virtual da Portugalidade. Teríamos, nesse caso, um museu completamente irrelevante. Essencialista e amarrado ao passado, apenas poderia repetir o já feito e o já sido. E sem travessia, nem audácia, seria sem qualquer préstimo para o futuro.